Por Rosângela Trolles
Outubro de 2022
Annie Ernaux ganhou o prêmio Nobel de Literatura de 2022. A
valorização da autora foi pra mim motivo de entusiasmo. Isso porque encontrei
no texto da professora francesa algo que eu buscava; a pouca afetação com a
utilização de metáforas muito fantasiosas e que a maioria constrói para fazer
uma comparação da realidade com um universo prepotente.
Li seu livro O lugar
publicado em 1983 e traduzido no Brasil em 2021 pela editora Fósforo. A
história fala da morte de seu pai, um camponês, depois operário que chegou à
pequena burguesia como comerciante de um café-mercearia. Essa é sua origem
primitiva que a preparou para ter uma educação melhor que a de seus pais.
Lugar aí pode ser visto também como o ponto onde ela se
coloca na malha social. Sim, porque a abordagem da autora é uma autossociobiografia
e seu livro é considerado um precursor do gênero. O mais potente de sua obra,
justamente, é mostrar o conflito de classes dentro das relações familiares. E aí
ela faz um mea culpa e declara com a
epígrafe de Jean Genet: “Arrisco uma explicação: escrever é o último recurso
quando se traiu.”
Annie que nasceu em 1940 fala de sua convivência com seu pai
(e sua mãe), um homem simples que trabalhava duro na província de Yvetot na
região administrativa da Normandia. Uma família normal em seus hábitos mas
muito bruta em seu trato. A filha que se educava foi se distanciando até mesmo
do modo de falar de seus pais que ela conta ser de uma forma grosseira, sempre
em tom de discussão, sempre aos gritos e quase sem conteúdo.
A moça conseguiu entrar para a universidade e se tornou
professora de Literatura, casou-se com um homem burguês e foi morar em outra
cidade. Teve dois filhos e quase não visitava mais seus pais até mesmo porque
eles só conseguiam conversar sobre os tomates da refeição. Mas mesmo assim seu
pai tinha sentimentos profundos e fazia questão de ressaltar a filha que nunca
lhe havia dado motivos de vergonha.
É certo que ele queria que sua filha tivesse uma posição
melhor que a sua mas Annie não pode deixar de observar que também existia um
conflito interno e uma inveja embutida no relacionamento com seu pai. É como se
ele não quisesse que ela voasse longe de suas asas e o deixasse ali, naquele
lugar.
Mas quando seu pai morre ela se vê de novo naquela região,
com os habitantes da mercearia e seus hábitos. Hábitos que ela se esqueceu em
seu ofício de professora. E como professora pode dar consciência e voz a tantos
outros até mesmo a mocinha que a reconhece no caixa do mercado. A aluna relata
que não conseguiu dar continuidade a seus estudos e Annie a viu ali, onde
provavelmente seria o seu lugar.
Annie Ernaux escreveu cerca de 20 livros sendo Os anos o mais comentado. Mas em O acontecimento ela dá força de vida para
a eterna batalha feminina por mais dignidade. Relatando um aborto clandestino
que teve que fazer em torno dos 20 anos, rompeu as amarras da luta por
existência feminina. O livro virou filme e tem uma abordagem inédita e
libertária para o tema.
Em novembro a autora que está com 82 anos vem à Flip e
entrará em contato com o público brasileiro. Um avanço e um alento num país tão
atrasado em termos de questões sociais no que tange as temáticas femininas. Um
debate necessário tanto local quanto universal num mundo que omite as questões
de classe e a opressão dos menos favorecidos.
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