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Carlos Patati e a arte


Por Rosângela Trolles

Carlos Patati, meu ex-marido, morreu aos 58 anos após vinte anos de convalescença em 15 de junho de 2018. Morreu como uma celebridade entre amigos e no mundo dos aficionados dos quadrinhos, arte para qual viveu intensamente. Foi um artista sem dúvida mas a única arte que me marcou dele foi a transgressão. Eu explico.

Carlos Patati nunca deixou de ser a criança do Colégio São Bento, conhecido como melhor colégio do Brasil. Era o menino temporão de uma família numerosa e abastada de Copacabana que tinha sempre muita diversão e vontades satisfeitas. Sua avó Augusta viveu 97 anos e teve quatro filhos e 16 netos, entre eles Patati que ainda teve sua tia-avó Antônia que reunia a família entre festas e presentes. Ele não aprendeu o que era sofrimento. Sempre almejou o padrão de vida de seu pai João, um comandante da Marinha. No ensino dirigido pelos monges beneditinos, conheceu Rodrigo Faro, seu grande amigo e padrinho de casamento, e criou o gosto pela Filosofia, ao qual iria se dedicar em toda a sua vida. Mas foi expulso pelo estabelecimento que também formou outras grandes personalidades como Heitor Villa-Lobos, Jô Soares, Noel Rosa, Paulo Francis, por criticar a ausência de mulheres na escola exclusiva para meninos, dificuldade maior na idade adulta, quando lidar com o feminino acarretaria estragos fatais.

Foi no nosso encontro que Patati conheceu o amor. Nos conhecemos no Instituto de Arte e Comunicação Social da Uff. Começamos a namorar em 1987, eu com 24 anos, ele com 26. Mas Patati tinha uma enorme dificuldade de se dar e forte tendência ao egoísmo, mesmo confessamente apaixonado por mim que também me dedicava ao mundo das artes com um gosto específico pela dança e pela poesia. Dois anos e meio depois, quando eu estava trabalhando brevemente na TVE, ele me pediu para morarmos juntos no seu apartamento de fronte para os Arcos da Lapa. Nos amávamos muito e eu via Kandinsky quando estava com ele. Em plenitude eu comentei uma vez: “Que pena que não te conheci a mais tempo”, ao que ele respondeu; ”Você não iria me aguentar”... O mercado de trabalho não nos favoreceu e eu fui viver de free-lance no jornalismo enquanto ele iniciava tardiamente a vida como professor de inglês e do ensino médio fazendo oficinas de jornal e quadrinhos. Tínhamos outros bicos e muitos sonhos de voo alto. Fazíamos coisas em cinema e eu me envolvi com ambientalismo e encontros mundiais e ele esteve ligado a bienais internacionais de quadrinhos. Eu em coletivas com Al Gore, ele com colóquios com Will Eisner.

Um ano e meio de casamento e surgiu a maior arte da vida: um filho. Tudo perfeito se não fosse a misoginia do menino rico do colégio de padre. Recebeu a notícia com um contorcer de nojo e repulsa o que me fez a maior ferida de uma vida, uma transgressão chamada aborto. Eu botei na cabeça que não era a hora, ele nem proferiu uma palavra sobre o assunto, não falava de assuntos íntimos e tratava de viver uma vida desabalada de boêmia, na qual eu perdi minha história. Mais um ano e uma segunda gravidez e, se conheci muitos casais que erraram no primeiro, nunca conheci casais que erraram no segundo. Mas Patati não saía das rodas de chopp e veio a transgressão fatal: o segundo aborto. Foi aí que eu morri, mas Patati só pensava em seu trabalho e sua arte.

Seis meses depois veio a primeira e única briga, mas definitiva. Eu não aguentava mais ouvir ele falar do trabalho dele sendo que eu também tinha que trabalhar para poder ter um filho, já que Patati não assumia a prole, o menino rico dizia que eles eram caros e demonstrava pleno desprezo por filhos e crianças. Aliás, a primeira conversa que tivemos casados foi o que ele propunha para a prole o que ele respondeu, “O quê? O proletariado?”. Com Patati era assim, era arte, filosofia e política, não tinha papo íntimo, não tinha jantar em casa, em seis anos que vivemos sob o mesmo teto, não me lembro de um.

Daí eram rodas de chopp intermináveis, Patati chegava às 22h, 24h, 2h, não vinha, até que eu fui embora e comecei a me perder pelo mundo, sem o filho que queria e devia ter tido. Traí a mim com uma renúncia estúpida, traí minha mãe, sua confiança, educação, dor, seu altruísmo, seu amor incondicional. Ela disse que eu fui burra, uma amiga disse que fui idiota, minha prima disse que fui otária mesmo.

Continuamos a nos encontrar independentes até que ele me liga do hospital, havia feito uma cirurgia de vesícula aos 38 anos. Do outro lado do telefone sua voz de veludo falou: “Vamos ficar juntos, te quero”. Dias depois Patati se mudava para Bahia, havia passado em concurso público como professor assistente para a Uesc. Agora dava pra ter o filho! Mas eu caí doente de síndrome de pânico consequente do trabalho para o qual Patati nunca deu uma palavra de conforto, fugiu, foi procurar algo divertido pra fazer. Dois anos depois me aparece novamente no Rio, internado numa UTI de hospital. Eu tinha 38 anos e ele falava da namorada nova, que não tinha nada com ela, pra gente ficar junto. Meu esposo. Quando se restabeleceu, porém com uma forte diabetes me ligava pra eu ir encontrá-lo no Leblon. Me dedicou a música “Drão” de Gilberto Gil.  Eu achei que ele havia perdido a matrícula na universidade e que seu pai ainda tinha muito gasto com sua doença. Tolinha. Eu longamente doente um dia fui reatar o casamento, totalmente transtornada. Patati não achou divertido e foi encontrar um amigo. Eu voltei e não tive o filho aos 40 anos, mas ele recebeu a aluna e namorada e tiveram uma filha; Sophia.

Então eu estava morta por um lado enquanto ele era um filme: “Quincas Berro d’água”, do texto de Jorge Amado. Já não podia beber, mas continuava a fumar a cannabis apesar de eu lhe dizer que o pâncreas não aguentaria e que isso não lhe daria saúde; eu já havia superado.

Passei a acompanhá-lo de facebook e vi uma confissão que fez ao citar o temperamento de Graciliano Ramos; seco no cuidado com os filhos. Mas sua vida ainda deu muitos frutos: passou a frequentar a confraria de quadrinhos, viajou, ganhou prêmio, participou de mesas redondas em encontros de HQ, escreveu livros.

Em 2013, com o segundo casamento já desfeito, ensaiamos uma reconciliação. Eu tinha feito 50 anos e praticava aquilo que Clarice Lispector definiu como dar a mão a si mesma. Nos encontramos e falamos de arte, filosofia e política mas o assunto tinha mudado, agora Patati falava de assuntos domésticos. Levei a ele o livro que escrevi quando terminei a pós-graduação de Filosofia e antes de uma dúzia de concursos públicos; “Este intenso sol do interior”, um romance ambientalista. Mas ele agora era pai, de um filho que eu não tive.

Aos 58 anos Patati estava internado na UTI, já sem viver com a filha e a mulher, reincidente do ano anterior quando quase havia morrido. Fui até o hospital quando ele já estava no quarto, mas não pude me despedir por indisposição com sua irmã que lá estava velando por ele. Uma semana depois soube que havia partido. O meu esposo, o homem que não me deu filhos, o homem que destruiu minha vida. Fui ao seu enterro. Não vi a mulher e a filha. Muitos amigos e a família. Lá estava ele sem a alma que tanto amei e enlacei a minha vida. Me lembrei da música que o enviei com angústia por e-mail e ainda recentemente, após a última alta, ele havia me respondido que sonhara comigo e com a música: “Ainda lembro”.

No resultado de uma vida eu descobri que um casamento apaixonado não acaba nunca e que a maior arte na vida é ter frutos. Fica aqui a poesia. Adeus.

Ainda Lembro
Marisa Monte
Ainda lembro o que passou
Eu, você, em qualquer lugar
Dizendo
"Aonde você for eu vou"
E quando eu perguntei
Ouvi você dizer
Que eu era tudo
O que você sempre quis
Mesmo triste eu tava feliz
E acabei acreditando
Em ilusões
Eu nem pensava em ter
Que esquecer você
Agora vem você dizer:
"Amor, eu errei com você
E só assim pude entender
Que o grande mal que eu fiz
Foi  a mim mesmo"
Vem você dizer
"Amor, eu não pude evitar"
E eu te dizendo
"Liga o som
E apaga a luz"
Ainda lembro o que passou
Ainda lembro como era bom
Ainda lembro, inda lembro
Ainda lembro, inda lembro
Ainda lembro

https://oglobo.globo.com/cultura/livros/morre-no-rio-quadrinista-carlos-patati-aos-58-anos-22783547


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